Pesquisar este blog

quarta-feira, 18 de julho de 2012

Os Olhos da Justiça

É comum as pessoas dizerem que a Justiça é cega ou tem olhos vendados, talvez pela imagem que a simboliza: uma pessoa de olhos vendados segurando uma balança e uma espada. Isso, em poucas palavras e muito a grosso modo (aqui não é um espaço para academicismos), significa dizer que a Justiça é forte e energica e não tem olhos para fazer distinção entre as partes que fazem uso dela. Mas na prática, ela acaba tendo olhos sim, e esses olhos acabam sendo os nossos, dos Oficiais de Justiça. São olhos que não têm a dificil tarefa de julgar ou dirimir conflitos, mas olhos que vêem o problema ali, nú e crú, com todas as suas consequências reais, tácteis e visíveis. Ali diante dos nossos olhos, está o desespero de uma mãe que tem que entregar o seu filho á custodia do Estado, de um desempregado preso por não cumprir com as suas obrigações alimentares ou de uma familia que se vê diante da noticia que está perdendo a sua casa. Não é fácil. Por mais profissionais que sejamos, também somos humanos. E por isso hoje eu vou narrar um pouco desse drama, contando o caso da Cigana Fara, ou Mãe Suzana.


O Estado entrou com um processo para ser reintegrado na posse do imóvel onde hoje reside a Cigana Fara. E em meio a discussões processuais, petições e decisões, conseguiu a Reintegração de Posse, e lá foi este Oficial que vos fala, cumprir a dificil tarefa de tirar a Cigana Fara de casa e remover seus pertences para um Depósito Público. De fora, se via uma casa aparentemente pequena. Ou seja, do ponto de vista puramente profissional, seria uma diligência pouco trabalhosa, apesar de toda a carga de tensão que naturalmente a envolve. Até que batemos na porta, eu e a colega Oficial que eu estava acompanhando (o Mandado na verdade era dela, mas esse tipo de diligência tem que ser feito por dois Oficiais em virtude de exigência da lei), e eis que pra mim se abre a tal realidade, que sempre se revela aos olhos desses profissionais que vêem os problemas na frente deles. Na casa da Cigana Fara viviam dezenas de pessoas, entre os seus parentes sanguíneos e os parentes de coração. Ela na verdade recebia ali todo o tipo de pessoas que viviam a margem da sociedade para tratá-los e dá-los abrigo físico e espiritual. Eram pessoas que antes moravam na rua, ex presidiários, pessoas com deficiências psíquicas, menores doentes, ex viciados...todos vivendo ali, naquela casa que, apesar de estreita e aparentemente pequena por fora, quando se adentrava, era imensa. Havia também dezenas de animais que ela retirava da rua e cuidava zelosamente, como pude notar. Enfim, leitor, tirar aquela pessoa de sua casa era uma tarefa que eu teria que cumprir, e ao mesmo tempo uma realidade dura para o coração mais frio do planeta.


Por obra do destino, a diligência acabou não podendo ser feita, uma vez que os representantes do Estado, que também não imaginavam o que tinha dentro daquela casa, não trouxeram o aparato suficiente, como estrutura para remover os animais para algum lugar e também destinação para os menores e doentes que lá se encontravam. Mas se tivessem levado todo este aparato, eu provavelmente teria que tirar desta casa tudo e todos que lá se encontravam. De um lado, o profissional, que não posso abandonar. E de outro, o ser humano, que faria isso com uma imensa dor no coração. E assim somos nós, Oficiais de Justiça: seres humanos, que vêem com os seus próprios olhos o drama das pessoas e as consequências que essas pessoas sofrerão em virtude da ordem que temos que zelosamente cumprir. E quando chegamos em casa, só nos resta orar pelas pessoas, pedindo que Aquele lá de cima as traga o conforto que nós não pudemos trazer. E por isso digo sempre que somos "Os Olhos da Justiça."

Nenhum comentário:

Postar um comentário